Artes Visuais

domingo, 18 de outubro de 2009

Intimidade

A intimidade exige um tempo para acontecer, e este tempo nunca coincide entre os envolvidos. Por vezes, o outro nos toma por íntimos antes mesmo de nos apresentarmos. Basta estar próximo para que alguém venha contar um segredo, falar da vida, discutir seus pensamentos. Há mesmo casos em que a intimidade nunca chega a ser completa: convivemos com uma pessoa por dias inteiros e nem sequer sabemos seu sobrenome.

Existem também as intimidades furtivas, aquelas que se dão somente em determinado local, com hora marcada. Acontece, por exemplo, quando a rotina nos leva sempre ao mesmo ponto de ônibus. Ali encontramos a gente que faz parte de nosso horário, rostos conhecidos que juramos saber de onde vêm, o que fazem e sentem graças a alguns minutos de conversa. O resto das informações se complementa com um pouco de imaginação e ousadia. Assim, quando uma daquelas figuras de sempre não está lá no cenário já memorizado, uma falha em nosso sistema de organização espacial no traz a preocupação com alguém que mal conhecemos.

Durante o ensino médio eu era um dos poucos alunos que procurava a biblioteca da escola no meu período. O fato de gostar de livros e ser um raro visitante me deu a sensação de proximidade com a bibliotecária, uma velha senhora corcunda, cuja voz parecia ser mais antiga que o resto do corpo. Ela me indicava livros e eu os comentava após a leitura, trocávamos impressões. Alguns livros recomendados pareciam seriamente chatos, mas só após algum tempo de contato entre nós pude dizer-lhe no ato que não os queria. Com intimidade, me achei no direito de apenas folhear os livros, sem levá-los ou observá-los com maior cuidado. Numa destas passadas rápidas, em que dobramos de leve o todo do livro para que as páginas dêem um efeito de desenho animado, apenas pára repensarmos sobre o tamanho do texto, uma severa bronca me veio daquela senhora: aquilo era um desrespeito com o material público. Nossa intimidade se quebrou quando voltamos a ser aluno e bibliotecária. Não que a intimidade não possa suportar um pequeno abalo, mas tendo acontecido diante de outras pessoas, que de minha parte não participavam de nossa intimidade, aquela frase encerrou com o livro fechado e reposto no lugar.

É curioso pensarmos que aquilo que nos é intimo o é porque nos afeta de algum modo. Algo que nos afeta parece raro atualmente, e poderíamos pensar nos casos em que este afeto é unilateral, como nossa relação com quem admiramos, um escritor, um artista, uma paixão platônica, uma paisagem.

Durante a semana, todas as manhãs, vou com a Valéria até o ponto de ônibus (que também deveriam ser chamados de pontos de encontros) de onde parte para seu trabalho. Seis horas da manhã, principalmente no inverno, o sol parece preguiçoso e deixa a noite se estender além da conta. Com o tempo, comecei a decorar as luzes que acendem nas casas e prédios que se apresentam no meu campo de visão. Sei o horário de cada uma e quase sempre acerto o tempo em que ficará acesa. Isto me deu uma intimidade com os moradores destas residências, ainda que eu não tenha idéia de quem sejam. E por isso mesmo acabo criando personagens que ali vivem, seus hábitos, suas personalidades. Se alguma luz não acende no horário que costuma, fica a vontade de acordar o atrasado para que não perca seu compromisso.

Qual não foi a surpresa quando uma manhã, na casa dianteira ao ponto, construção remota e conservada que guarda traços de uma época em que era seguro muros baixos e fachada que lembra casas de antigas cidades do interior, a janela que suponho ser do quarto se abriu (como um jornal, diria Oswald de Andrade) e um senhor calvo olhou e acenou com um sorriso aberto, como se já nos conhecêssemos. Intimidade demais, assustei.

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