Vinha arrastando chinelos, pêlos do braço arrepiando de frio. O sol da
tarde enganava, e o vento sibilava cortando a pele, quase gritou a bronca, mas
a natureza tem sempre razão, o vento fazia sol e isso era parte dos planos
divinos, sim Senhor! Passou na casa de Teresa, nem abriu o portão, gritou da
calçada por ramos de arruda, guiné, alecrim, manjericão, pimenteira. Sete ervas
protetoras, vem meu guia com a benção da espada de São Jorge, abençoa Oxossi,
monta em mim que comigo-ninguém-pode. Fazia tempo, anos inteiros que não
chamavam seus serviços de benzedeira, passava os dias fazendo de-um-tudo na
escola que trabalhava, limpava salas, telefonava. Chegou mesmo a participar de
peças de teatro montadas nas formaturas ou momentos quaisquer. Precisavam de
algo, logo se apresentava, que não era mulher de ficar parada, vida brilhando
em Leão, lua raiando em Áries. Guarací andava olhando por cima, nunca baixava
os olhos, nem quando Isael gritava. Antes que ele levantasse a mão ela já tinha
partido, os filhos carregados, carregando móveis. A casa vazia deixou Isael
perdido, mas logo foi fazer pousada na casa da outra. A negritude de Guarací se
destacava em seus cabelos constantemente pintados de vermelho, aganjú em cabeça
de mãe já avó cheia de yeré.
Quem chamou sua benção foi o dono da
padaria, um amigo estava de encosto na morte, queria ouvir palavras fortes. Não
de cura, que sentia hora de deixar o corpo, só receber uma luz acesa pra fazer
a passagem. Ela quase nem lembrava mais o jeito certo dos cantos, tempo que
deixou pra trás. Agora não ia a terreiro sempre, só sexta feira, pois que o
domingo era hora de assistir missa, fazia muito gosto do jovem padre. Fosse
Santa Ana, Nãnã Burukê, importante é deus no coração, repetia a si, aos outros.
Quando ainda era casada com Isael, ele ficava de longe, observando as danças e
os encantamentos. Só desviava o olhar por Dina, a amante. A esposa descobriu
pelo cheiro, que era repetitivo no peito do homem. Uma ou outra, vá lá, mas ele
encontrar sempre a mesma era peso demais para Guarací: deixa a vagabunda, disse
aflita. Era tarde pra mudar, a vizinhança comentava, os filhos desconfiavam.
Vou morar com ela, suspirou Isael. Tarde ainda é cedo, retrucou a negra, a
gente pega os meninos, muda de cidade e nada aconteceu, certo? Isael não
encarava, negava com a cabeça a possibilidade apresentada. Pois fique sabendo
que esta vadia vai te dar um par de chifres e você ainda vai gostar. Foi aí que
o Isael gritou e saiu, voltando só quando encontrou o lar desmanchado. A Guarací
ainda chorou escondida por alguns meses, moeu o ódio no peito, cuspiu no chão
ao lembrar o nome dele e assim foi indo. Os meninos cresceram, Guarací
encontrou outros homens cheios de alegria e vontade.
Voltou ôrí pro lugar e passou.
Gostava era de assistir casamento dos outros, procissão de Santa Rita era
ela puxando hinário. Às vezes benzia, mas tão espaçadamente que quase que não
fazia. Nem se lembrava da última vez que pôde mojuba, ervas e rosário na mão,
ás vezes faca de lâmina afiada pra tirar íngua. No momento de entregar as
plantas, Teresa quis ir junto, mas Guarací disse que era caso de deixar o
moribundo em paz. Continuou lépida, que a lonjura ficava pra trás. Entrou na
padaria e o velho de fartos bigodes chamou de longe:
- Ô, dona Guarací,
venha tomar um algo, venha. O doente foi tomar um ar e volta logo.
Então se o semi-vivo agüentava vagar, talvez fosse o caso de reza pra
melhora mesmo. Pediu omi dudu bem quente e coxinha de frango. Saiu de casa sem
almoço, deixou panela fervendo arroz pra neta loirinha. Alías, loira como a
Madrinha que visitava Guarací quando menina, brincava, falava frases
incoerentes com a pequena, não conversava com os pais. Até a adolescência a
jovem acreditou numa briga entre todos, a Madrinha vindo visitar escondida. Foi
a Madrinha que deu o recado repassado ao irmão: se for sair de carro, não
estacione na direita por muito tempo. O irmão nem fez caso, saiu pra comprar
anel pra namorada. O carro ficou na direita da rua, o rapaz dentro da loja
apenas assistindo o caminhão descontrolado arrebentar o veículo. Guarací
apanhou da mãe pra ver se parava de falar com o diabo. A visitante sumiu por um
tempo e só quando entrou pro terreiro a mulher entendeu: a Madrinha era iderubá.
Vasculhou na memória algum canto de passagem, como era aquele da luz?
se for tudo escuridão
a penumbra uma cadeia
escreva à pena uma oração
à senhora das candeias
se apagar o coração
na hora que o sol vai embora
basta só estender as mãos
à luz
de Nossa Senhora
Cantou murmurando, o bigodudo atento deixou escapar um riso. Guarací
olhou duro, não acredita não? Mas também não duvido, respondeu o homem, só que
essa coisa de benzer, coisa dos antigos que moravam longe, não tinham médico,
gente sem... O silêncio dela calou seu raciocínio. Foi atender outra mulher que
vinha trazer o recado de que o doente estava em casa, febre ardendo. O homem
apontou a casa em frente, pediu desculpas pelo mal falado. Não tem nada,
comentou Guarací à saída. Entrou na casa do futuro defunto, sentiu o cheiro de
comida estragada e cachaça no ar. Uma voz gemida perguntou quem chegava. A
benzedeira? Sim, acalmou Guarací. O homem estava debaixo das cobertas, o quarto
fechado iluminado por uma lâmpada mal pendurada por um fio. Guarací pegou sua
mão molhada, tirou a coberta de cima do rosto e encontrou Isael velho:
- Guarací que
bom que bom que
veio ...
Tudo que dormiu no tempo veio à boca de Guarací, que mordia forte pra
conter palavras. Então era ele o que morria? Onde estava Dina, seus carinhos,
suas ancas? Que velho acabado estava o marido. O ex, o ex. Trôpego, lixo, o
amado, o puto: o Isael. Ela me deixou faz tempo, balbuciou, pensei tanto em
você, nos meninos. Guarací não tinha mais certeza se falava ou só imaginava.
Nem procurou a gente, virou bicho por causa de outra obí, agora morre de quê?
Morro de cachaça, sentenciou Isael, bebi pra ver se engolia ou botava pra fora
esta vida desgraçada que eu fiz, culpa minha, culpa minha. Abençoa eu?
A vida prega momentos, outros, deixa voar. Só
que prego enferruja, suja tudo, depois acaba por embaçar o que ficou. Guarací
aproximou o rosto do pescoço do homem, cheirou, fechando os olhos pra voltar
atrás nos anos. Pensou em deitar ao lado, lavar seu corpo, curar, recuperar os
encontros perdidos entre os lençóis. Que doença é essa que te leva, Isael? Ele
a puxou pra mais perto: ábamó. Guarací se levantou, arrastou roupas jogadas,
arrumou gavetas, preparou sopa. Isael se levantou lento, abraçá-la por trás.
Ela deixou por segundos, mas saiu logo. O velho voltou pra cama após a comida e
chamou num gesto: a gente volta? Benzedeira puxou as sete ervas e o rosário,
iniciou sua ladainha. Com a benção de Oxossi te rogo as lágrimas de Santa
Teresinha, livrai-o Jesus das chagas, da sina... Parou a benção pela metade,
deixando as ervas caírem. Que acontece, sufocou Isael, num começo de convulsão
e dúvida. Guarací reparou o volume sob a calça dele. Reza sófo não adianta,
meus ais são ocos pra doente sem doença, comentou a benzedeira. Acossado, Isael
garantiu que estava bem de verdade, só pediu pro compadre chamar por Guarací
porque tinha o peito cada vez mais gelado, sozinho. Queria que a esposa
ficasse. Pegou novamente as ervas, deu a reza e terminou: tá desamarrado, pode
deixar este mundo, disse ela ao abrir a porta e sair sem olhar pra trás, pra
nunca mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário