Artes Visuais

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Iansã, amém




Vinha arrastando chinelos, pêlos do braço arrepiando de frio. O sol da tarde enganava, e o vento sibilava cortando a pele, quase gritou a bronca, mas a natureza tem sempre razão, o vento fazia sol e isso era parte dos planos divinos, sim Senhor! Passou na casa de Teresa, nem abriu o portão, gritou da calçada por ramos de arruda, guiné, alecrim, manjericão, pimenteira. Sete ervas protetoras, vem meu guia com a benção da espada de São Jorge, abençoa Oxossi, monta em mim que comigo-ninguém-pode. Fazia tempo, anos inteiros que não chamavam seus serviços de benzedeira, passava os dias fazendo de-um-tudo na escola que trabalhava, limpava salas, telefonava. Chegou mesmo a participar de peças de teatro montadas nas formaturas ou momentos quaisquer. Precisavam de algo, logo se apresentava, que não era mulher de ficar parada, vida brilhando em Leão, lua raiando em Áries. Guarací andava olhando por cima, nunca baixava os olhos, nem quando Isael gritava. Antes que ele levantasse a mão ela já tinha partido, os filhos carregados, carregando móveis. A casa vazia deixou Isael perdido, mas logo foi fazer pousada na casa da outra. A negritude de Guarací se destacava em seus cabelos constantemente pintados de vermelho, aganjú em cabeça de mãe já avó cheia de yeré.
           Quem chamou sua benção foi o dono da padaria, um amigo estava de encosto na morte, queria ouvir palavras fortes. Não de cura, que sentia hora de deixar o corpo, só receber uma luz acesa pra fazer a passagem. Ela quase nem lembrava mais o jeito certo dos cantos, tempo que deixou pra trás. Agora não ia a terreiro sempre, só sexta feira, pois que o domingo era hora de assistir missa, fazia muito gosto do jovem padre. Fosse Santa Ana, Nãnã Burukê, importante é deus no coração, repetia a si, aos outros. Quando ainda era casada com Isael, ele ficava de longe, observando as danças e os encantamentos. Só desviava o olhar por Dina, a amante. A esposa descobriu pelo cheiro, que era repetitivo no peito do homem. Uma ou outra, vá lá, mas ele encontrar sempre a mesma era peso demais para Guarací: deixa a vagabunda, disse aflita. Era tarde pra mudar, a vizinhança comentava, os filhos desconfiavam. Vou morar com ela, suspirou Isael. Tarde ainda é cedo, retrucou a negra, a gente pega os meninos, muda de cidade e nada aconteceu, certo? Isael não encarava, negava com a cabeça a possibilidade apresentada. Pois fique sabendo que esta vadia vai te dar um par de chifres e você ainda vai gostar. Foi aí que o Isael gritou e saiu, voltando só quando encontrou o lar desmanchado. A Guarací ainda chorou escondida por alguns meses, moeu o ódio no peito, cuspiu no chão ao lembrar o nome dele e assim foi indo. Os meninos cresceram, Guarací encontrou outros homens cheios de alegria e vontade.
Voltou ôrí pro lugar e passou.
Gostava era de assistir casamento dos outros, procissão de Santa Rita era ela puxando hinário. Às vezes benzia, mas tão espaçadamente que quase que não fazia. Nem se lembrava da última vez que pôde mojuba, ervas e rosário na mão, ás vezes faca de lâmina afiada pra tirar íngua. No momento de entregar as plantas, Teresa quis ir junto, mas Guarací disse que era caso de deixar o moribundo em paz. Continuou lépida, que a lonjura ficava pra trás. Entrou na padaria e o velho de fartos bigodes chamou de longe:
- Ô, dona Guarací, venha tomar um algo, venha. O doente foi tomar um ar e volta logo.
Então se o semi-vivo agüentava vagar, talvez fosse o caso de reza pra melhora mesmo. Pediu omi dudu bem quente e coxinha de frango. Saiu de casa sem almoço, deixou panela fervendo arroz pra neta loirinha. Alías, loira como a Madrinha que visitava Guarací quando menina, brincava, falava frases incoerentes com a pequena, não conversava com os pais. Até a adolescência a jovem acreditou numa briga entre todos, a Madrinha vindo visitar escondida. Foi a Madrinha que deu o recado repassado ao irmão: se for sair de carro, não estacione na direita por muito tempo. O irmão nem fez caso, saiu pra comprar anel pra namorada. O carro ficou na direita da rua, o rapaz dentro da loja apenas assistindo o caminhão descontrolado arrebentar o veículo. Guarací apanhou da mãe pra ver se parava de falar com o diabo. A visitante sumiu por um tempo e só quando entrou pro terreiro a mulher entendeu: a Madrinha era iderubá.
Vasculhou na memória algum canto de passagem, como era aquele da luz?
se for tudo escuridão
a penumbra uma cadeia
escreva à pena uma oração
à senhora das candeias
se apagar o coração
na hora que o sol vai embora
basta só estender as mãos
à  luz de Nossa Senhora
Cantou murmurando, o bigodudo atento deixou escapar um riso. Guarací olhou duro, não acredita não? Mas também não duvido, respondeu o homem, só que essa coisa de benzer, coisa dos antigos que moravam longe, não tinham médico, gente sem... O silêncio dela calou seu raciocínio. Foi atender outra mulher que vinha trazer o recado de que o doente estava em casa, febre ardendo. O homem apontou a casa em frente, pediu desculpas pelo mal falado. Não tem nada, comentou Guarací à saída. Entrou na casa do futuro defunto, sentiu o cheiro de comida estragada e cachaça no ar. Uma voz gemida perguntou quem chegava. A benzedeira? Sim, acalmou Guarací. O homem estava debaixo das cobertas, o quarto fechado iluminado por uma lâmpada mal pendurada por um fio. Guarací pegou sua mão molhada, tirou a coberta de cima do rosto e encontrou Isael velho:
- Guarací         que   bom que bom                 que veio               ...
Tudo que dormiu no tempo veio à boca de Guarací, que mordia forte pra conter palavras. Então era ele o que morria? Onde estava Dina, seus carinhos, suas ancas? Que velho acabado estava o marido. O ex, o ex. Trôpego, lixo, o amado, o puto: o Isael. Ela me deixou faz tempo, balbuciou, pensei tanto em você, nos meninos. Guarací não tinha mais certeza se falava ou só imaginava. Nem procurou a gente, virou bicho por causa de outra obí, agora morre de quê? Morro de cachaça, sentenciou Isael, bebi pra ver se engolia ou botava pra fora esta vida desgraçada que eu fiz, culpa minha, culpa minha. Abençoa eu?
             A vida prega momentos, outros, deixa voar. Só que prego enferruja, suja tudo, depois acaba por embaçar o que ficou. Guarací aproximou o rosto do pescoço do homem, cheirou, fechando os olhos pra voltar atrás nos anos. Pensou em deitar ao lado, lavar seu corpo, curar, recuperar os encontros perdidos entre os lençóis. Que doença é essa que te leva, Isael? Ele a puxou pra mais perto: ábamó. Guarací se levantou, arrastou roupas jogadas, arrumou gavetas, preparou sopa. Isael se levantou lento, abraçá-la por trás. Ela deixou por segundos, mas saiu logo. O velho voltou pra cama após a comida e chamou num gesto: a gente volta? Benzedeira puxou as sete ervas e o rosário, iniciou sua ladainha. Com a benção de Oxossi te rogo as lágrimas de Santa Teresinha, livrai-o Jesus das chagas, da sina... Parou a benção pela metade, deixando as ervas caírem. Que acontece, sufocou Isael, num começo de convulsão e dúvida. Guarací reparou o volume sob a calça dele. Reza sófo não adianta, meus ais são ocos pra doente sem doença, comentou a benzedeira. Acossado, Isael garantiu que estava bem de verdade, só pediu pro compadre chamar por Guarací porque tinha o peito cada vez mais gelado, sozinho. Queria que a esposa ficasse. Pegou novamente as ervas, deu a reza e terminou: tá desamarrado, pode deixar este mundo, disse ela ao abrir a porta e sair sem olhar pra trás, pra nunca mais.

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