Acreditava em gnomos. E de acreditar,
jurava vê-los correndo pelas gramas da praça ou, ainda mais fantástico, pela
baça lente de uma luneta apontada para a lua. Não me lembro de enxerga-los, mas
a história virou lenda familiar, repetida tantas vezes a ponto de confundir imaginação
e lembrança que formei a partir das narrativas alheias. E nunca houve, para
minha felicidade, um adulto que desmentisse a existência dos seres mágicos. Ao
contrário, estava cercado de pessoas que incentivavam minha imaginação com mais
detalhes, perguntas que estimulavam meu falar. De certa forma, a criança
inventiva dava permissão para que os mais velhos liberassem um sentimento
lúdico que andava preso pelos anos e pela rotina do concreto.
Ouvi dizer que era preciso deixar
uma maçã em um canto da casa para que os pequeninos se alimentassem. Na
verdade, não sei se ouvi mesmo esta instrução ou se é mais uma memória
construída com ficções. Sei que gravou-se em mim a imagem de uma maçã murchando
sob o móvel antigo que atulhava o estreito apartamento. Nossos cômodos tinham
móveis rústicos, quase sempre de um marrom escuro (ou seria isso efeito do
filme antigo dos meus olhos-registradores?) e uma fina camada de poeira eterna.
Não tenho certeza, acho que jamais observei mínimas pegadas. O que só aumentava
meu fascínio pelos duendes. Ou gnomos. Só anos mais tarde descobri as
diferenças entre eles, porém sempre preferi chama-los de gnomos. Gostava do som
da palavra, o choque de consoantes no início, a repetição das letras o’s.
Meu pai trabalhava em uma loja de
móveis usados, o que justificava o apartamento então novo mobiliado com objetos
antigos. Creio que esta decoração não planejada apontava já meu futuro
interesse por ruínas, por vestígios de vidas gastas. Quando um móvel não
acompanhava a mudança de gosto da pessoa, lá iam os funcionários da loja buscar
na casa do cliente o trambolho. Vez ou quase, um deste objeto surgia como
encaixe perfeito para uma parede vazia e uma necessidade cheia, então meus pais
ficavam com o móvel por um desconto no salário. E sempre era possível encontrar
um brinde, algo deixado pelos antigos donos das gavetas: falsas bijuterias,
dinheiro sem valor, retratos.
Rememoro um final de tarde,
voltava para casa com minha mãe e meu irmão. Eu balançava entre os seis e sete
anos, passava o dia todo na escola, sondando letras. Ainda as descobria e já
sentia prazer em observar suas curvas. Aquela terça-feira desabava em chuva,
ritmava o barulho da galocha que usava em dias assim, calçado coaxando enquanto
subia todos os degraus até o último andar. Meu pai abriu a porta mal chegávamos
à sua frente. Tinha o rosto espantado, vigiava por trás de nós, olhando paredes
e chão:
- Você não imagina o que
aconteceu.
Não esperou que eu perguntasse,
tamanha euforia em dar a notícia:
- Quando eu cheguei agora há
pouco, abri a porta do apartamento e cinco gnomo saíram correndo, passaram por
baixo das minhas pernas e desapareceram na escada. Quando fui ao seu quarto ver
porque ele vinha de lá...
Entrei sem pressa de ver o que me
aguardava. Estava atento ao relato, minha fantasia se desdobrava na correria
dos diminutos entes. Meu pai indicou o caminho, sugerindo que eu fosse
descobrir o que tinham deixado para mim. Sob a minha cama, uma pilha de livros
fabulosos: Aladim, Peter Pan, Alice no País das Maravilhas. Abracei cada um
daqueles livros, ignorei o cheiro de guardado que traziam impressos em suas
páginas. Passava os dedos com calma sob as ilustrações, investigava com cuidado
as sensações gráficas que um bloco de texto me dava. Aqueles livros, enquanto
objetos, foram minhas primeiras sensualidades. Ainda hoje, quando encontro um
livro excitante, leio com todos os sentidos despertos. Sou atraído por
encantamentos. Porque em algum lugar em mim ficou a discreta crença de que
gnomos é que são os verdadeiros editores.
Eita. Que mágico. Texto bacana vai de crônica à ensaio.
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