Claro que sou
habitado por memórias, imagens nômades que se confundem nas datas, lembranças
que me chamam até a janela para ver o desfile do passado. O que não significa
que seja saudosista. Não tenho maior pareço por idades passadas que pela atual.
Cada qual com sua índole. Imagino as recordações todas colocadas em um mapa topográfico,
carregado de curvas, tantas e tais que é impossível se perceber detalhes. Então,
para que não se percam todas no emaranhado do tempo, estacas são colocadas para
destacar algumas delas. A escolha é aleatória, nem sequer imagino quem ou o quê
lança essas marcas. Quando percebo, já estão ali, pedindo atenção. Esta aqui,
por exemplo, mostra um menino de 12 anos com seus brinquedos, cavando túneis em
montes de areia. Não era difícil encontrá-los, estavam por toda parte no bairro
novo. E enquanto eu organizava uma cidade subterrânea com os bonecos (índios,
soldados, robôs), meus colegas de idade descobriam outros jogos: muitos já
conheciam os sabores e amores de beijos e toques. Eu imaginava ser bom, mas não
tinha pressa, estava ocupado demais recriando o mundo. Os corpos iam crescendo
e as roupas diminuindo, as festas se tornavam uma opção aos domingos de árvores
e tédio. Os meninos davam a entender que eu estava atrasado, que minha infância
se prorrogava além do devido. Eu duvidava: ainda tinha muita imaginação. Também
ansiava sentir também o calor alheio, mas projetava isso para um futuro
abstrato. Almejava um romance de novela, com direito a trilha sonora, alguma
das canções que ouvia ilustrando o enredo. A ficção era minha realidade.
Vai daí que eu
me apaixonava intermitentemente. Bastava que ela soubesse meu nome, ou que
aquela fosse gentil comigo, ou que outra me olhasse por mais tempo e seu nome
se tornava minha fixação, a palavra que eu mais repetiria durante o longo
trajeto entre um e outro acontecimento, paixões que duravam intensos oito ou
nove dias. Enfiado na distração de uma dessas, dividia uma manhã entre
observá-la e copiar o que estava na lousa. Alguém bateu à porta e chamou a
professora. Logo ela voltava, apresentando:
- Essa é nossa
nova colega, Viviane...
Olhei uma
primeira vez, passarinho à toa, à toa. Atentei uma vez mais, para cair na
armadilha: Viviane, sardas no rosto, menina da fazenda, verde-terra na vista.
Ali, algo aconteceu. Meu primeiro alumbramento. A responsável por iniciar os últimos
instantes de minha criancice. Por diante, tudo seria diferente. Isso porque
Viviane era diferente, nenhuma outra era, então, como ela. Viviane tinha seios.
Não que nas demais eles já não iniciavam uma tímida apresentação. Mas nela as
curvas se destacavam, pediam calma e euforia, desassossegavam os afazeres.
Puxei uma salva de palma, assobios e gritos de glória. A escola decretou
feriado e uma parada cívica teve início na quadra. Ninguém notou a festa que se
fazia em mim durante a caminhada dela até sua cadeira.
Filho dos zeladores da escola, encontrei minha casa à desertos de distância. Palavra alguma significava aqueles seios. Eu precisava falar com eles. Com ela. Com certeza eu não era o primeiro navegante à avistar aquelas ilhas, era preciso um plano. Tentei montar uma prévia com meus brinquedos, e subitamente eles se transformaram em objetos inúteis. Viviane não quereria nada comigo se me visse com eles: estava decretada a falência múltipla da meninice. Pela última vez enterrei os bonecos, desta vez no quintal, sob o pé de maracujá em flor.
Namoramos,
conhecemos outras nações, mergulhei em sua história onde construí um templo. Contei
a ela todo esse assomo e ela riu, balançando os ombros e lançando a cabeça para
trás. E disse:
- Você está
inventando!
Ela sabia. Ou antes,
ela nunca soube. Minha timidez permitiu que, no máximo, criasse amizade com seu
irmão e frequentasse sua casa. Nunca frequentei seus seios. Eles ficaram como
as estacas que impedem essa reminiscência de ser levada pelo vento dos dias.
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