Artes Visuais

domingo, 25 de janeiro de 2015

Quinze

Minha mãe tinha câncer e estava em tratamento. Eu tinha 15 anos e estava de férias. Passamos a virada do ano na casa dos parentes na capital e 1997 chegava dando ordem: não dava mais para viver no interior e ter que viajar sempre que fosse o momento da quimioterapia. Era hora de voltar a viver em São Paulo, a cidade que era minha maternidade mas que eu, acostumado ao pé de terra por seis anos, não desejava por chão. Passados alguns dias na metrópole, minha vontade era abrir uma porta no quarto das tias e sair no meu quarto em Mococa.

Porém ainda não era categórica essa decisão, embora a família já se desmembrasse. Um irmão casado procriava outra casa. O outro já ensaiava um emprego para breve e iria embora (ou voltar?) antes que nós. O pai saira de casa há pouco. Logo não teríamos nem os cães nem a gata como parte do bando.
Terminada as festas e a temporada de pancadas médicas, voltávamos. O combinado: sair via rodoviária do Tietê até Valinhos. Lá encontrar uma prima da mãe e seguir de carro. Era 15 de janeiro. Aniversário do Sidnei, o amigo mais amigo. Signo de câncer, eu, tão introspectivo, não era aberto a muitas companhias. Sidnei era parceiro de violão, bobagens e paqueras. Nas lojas da rodoviária procurei um presente, um símbolo para aquele dia. Encontrei um relógio de pulso, sinceramente feio, mas que participava do que eu tinha para gastar. Em Valinhos a prima esperava em um carro abarrotado de malas, sacolas com frutas e um bebê de oito meses, meu companheiro no banco traseiro. Logo contaria ao meu amigo que sairia da cidade e nossa amizade seria feita de distâncias no tempo e no espaço.

E o tempo era instável como todo verão, sol rasgando a rodovia e chuvas surpresas. Encontramos uma destas na divisa de Casa Branca com Mococa. Gotas e caminhões cruzavam a pista única. Ao tentar desembaçar o vidro, a prima perdeu a direção e o tempo se dilatou: nenhum caminhão passou enquanto o carro rodava na pista, esbarrava em um morro e terminava virado. Ainda tive séculos para apoiar a mão direita no teto e com a esquerda amparar o bebê que dormia em sua cadeirinha. Susto feito, o tempo retomou o rumo e saímos do carro arrebentando o último vidro inteiro. Veículos já encostavam, entre eles uma ambulância. A prima ficou presa junto ao volante, a mãe se cortara com os cacos e o câmbio acertou sua perna em um lugar onde, um ano depois, o câncer também estaria morando. O bebê trazia pequenas ranhuras e eu, o passageiro sem cinto, saíra totalmente ileso graças ao exagero de bolsas da motorista.

O carro ficou destruído e junto com ele o relógio, que estancou a hora do acidente: 15 horas. O tempo, com seus absurdos como ter feito isso acontecer há tanto que às vezes me volta à lembrança como uma história que me contaram, fez seu trabalho de desencontro. Poucas vezes vi o Sidnei, desde então. Nos falamos eventualmente pela internet e embora nossos diálogos e nossos traços sejam feitos de outras experiências, nossa amizade fixou-se para sempre entre o rosto do aniversário dele, que acabava de sair dos 15, e os ponteiros travados do acidente.

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