Artes Visuais

quarta-feira, 25 de março de 2015

UM DIA


Agora a vemos de olhos fechados. A velocidade de seu movimento corresponde à síntese do sonho: o tio a observa de cima da mesa, perguntando quando ela irá visitá-lo. O tio é um gato rafeiro. Ela não tem tio e nós não vemos nada disso, apenas supomos sua visão. Os sonhos e as dores são intransferíveis. 

Ela dorme depois de algumas gotas.

Ainda não suspeita que acordará na próxima quinta sexta domingo, não tem ideia de que acordará um dia e encontrará outra escova de dentes, além da sua, sobre a pia. Que olhará com desconfiança as duas escovas deitadas e dirá algo, que sua boca promete conter. Nem sequer imagina que dentro da gaveta a cozinha guarda uma faca de cabo verde, tão alheia à louça branca. Olhará, sabemos disso, a xícara - borrada de café - sobre a pia. Estamos cientes de que ela pensará em visitas que não recebeu.

Ela nem pensa nisso, no momento.

O corpo se contorce e vira para a parede. Em lugar algum de sua pele está escrito (talvez na beira dos poros, lugares que não damos conta de narrar aqui) que naquele dia, a chuva martelará a janela e a intimará à permanência: hibernação. Caminhará pela sala, aturdida com os dois pares de calçados infantis espalhados no chão: os sobrinhos gostariam de visitá-la, mas ela não é tia. Na sequência, escolherá aleatoriamente um livro na estante, embora saibamos não se tratar de acaso. Mas deixemos que ela aceite. Seus dedos tremerão diante da dedicatória feita a ela, desejando amores. A assinatura de um nome desconhecido a assustará, fazendo com que/

Ela está excitada, sente o lençol roçando suas costas e provavelmente corresponde na tela das pálpebras um corpo a mais. De maneira que nem mesmo uma profecia do inconsciente lhe dita que no dia que virá, enquanto prepara o almoço, encontrará na porta da geladeira o retrato de um grupo de pessoas sorrindo em uma festa de ano novo. Investigará cada rosto e não encontrará um nome. Seus dentes também estarão expostos, os olhos escolhendo para qual máquina mirar.

Percebam o suor deslizando rumo ao travesseiro. Ela considera – AO MENOS PODERIA CONSIDERAR, NOS POUPARIA A DESCRIÇÃO. MAS NÃO O FAZ. – que a toalha molhada sobre a cama, o chuveiro chorando e as mochilas dormindo no sofá são evidências de outras vidas atravessando seu apartamento. O temor de que espíritos estejam à espreita não será descartado, ecos do passado ressoando do fundo do poço da memória. Receará a invasão de ladrões avessos, que não levam nada: apenas trazem, acumulam mundos e sombras. A atenção às frases truncadas do livro a distrairá até que nem se dê conta de que uma garatuja na parede será homenagem de um neto ou de um vizinho interessado em// Vocês também podem notar como ela acorda com o som de carros atropelando a madrugada e como a gata rodeia seu ronronar até estancar as unhas? Talvez a gata, com sua pupila de vitral, possa assistir a espiral do tempo entregando paisagens futuras. E por um átimo, a felina assista previamente que a mulher, no dia em questão - próximo próximo -, não presenciará a chegada de uma cesta com doces e acenos de felicidades pelos anos somados.

Ela estica as pernas, suspira o sopro de séculos, volta ao sono.

A mulher.

Aprofunda-se, inocente, na escuridão, e não presume o café no fim da tarde, tomado enquanto ela cogitará a origem perdida de uma mensagem de luto escrita sobre as folhas de uma flor. Sorverá já sem pressa de entender a matemática dos acúmulos e perdas, enquanto a noite a solicitará para um encontro. Ela desliga o despertador do celular e sente algo que não sabemos, neste instante, como chamar.

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