Agora a vemos de olhos fechados. A velocidade de seu movimento
corresponde à síntese do sonho: o tio a observa de cima da mesa,
perguntando quando ela irá visitá-lo. O tio é um gato rafeiro. Ela não
tem tio e nós não vemos nada disso, apenas supomos sua visão. Os sonhos e
as dores são intransferíveis.
Ela dorme depois de algumas gotas.
Ainda não suspeita que acordará na próxima quinta sexta domingo, não
tem ideia de que acordará um dia e encontrará outra escova de dentes,
além da sua, sobre a pia. Que olhará com desconfiança as duas escovas
deitadas e dirá algo, que sua boca promete conter. Nem sequer imagina
que dentro da gaveta a cozinha guarda uma faca de cabo verde, tão alheia
à louça branca. Olhará, sabemos disso, a xícara - borrada de café -
sobre a pia. Estamos cientes de que ela pensará em visitas que não
recebeu.
Ela nem pensa nisso, no momento.
O corpo se
contorce e vira para a parede. Em lugar algum de sua pele está escrito
(talvez na beira dos poros, lugares que não damos conta de narrar aqui)
que naquele dia, a chuva martelará a janela e a intimará à permanência:
hibernação. Caminhará pela sala, aturdida com os dois pares de calçados
infantis espalhados no chão: os sobrinhos gostariam de visitá-la, mas
ela não é tia. Na sequência, escolherá aleatoriamente um livro na
estante, embora saibamos não se tratar de acaso. Mas deixemos que ela
aceite. Seus dedos tremerão diante da dedicatória feita a ela, desejando
amores. A assinatura de um nome desconhecido a assustará, fazendo com
que/
Ela está excitada, sente o lençol roçando suas costas e
provavelmente corresponde na tela das pálpebras um corpo a mais. De
maneira que nem mesmo uma profecia do inconsciente lhe dita que no dia
que virá, enquanto prepara o almoço, encontrará na porta da geladeira o
retrato de um grupo de pessoas sorrindo em uma festa de ano novo.
Investigará cada rosto e não encontrará um nome. Seus dentes também
estarão expostos, os olhos escolhendo para qual máquina mirar.
Percebam o suor deslizando rumo ao travesseiro. Ela considera – AO MENOS
PODERIA CONSIDERAR, NOS POUPARIA A DESCRIÇÃO. MAS NÃO O FAZ. – que a
toalha molhada sobre a cama, o chuveiro chorando e as mochilas dormindo
no sofá são evidências de outras vidas atravessando seu apartamento. O
temor de que espíritos estejam à espreita não será descartado, ecos do
passado ressoando do fundo do poço da memória. Receará a invasão de
ladrões avessos, que não levam nada: apenas trazem, acumulam mundos e
sombras. A atenção às frases truncadas do livro a distrairá até que nem
se dê conta de que uma garatuja na parede será homenagem de um neto ou
de um vizinho interessado em// Vocês também podem notar como ela acorda
com o som de carros atropelando a madrugada e como a gata rodeia seu
ronronar até estancar as unhas? Talvez a gata, com sua pupila de vitral,
possa assistir a espiral do tempo entregando paisagens futuras. E por
um átimo, a felina assista previamente que a mulher, no dia em questão -
próximo próximo -, não presenciará a chegada de uma cesta com doces e
acenos de felicidades pelos anos somados.
Ela estica as pernas, suspira o sopro de séculos, volta ao sono.
A mulher.
Aprofunda-se, inocente, na escuridão, e não presume o café no fim da
tarde, tomado enquanto ela cogitará a origem perdida de uma mensagem de
luto escrita sobre as folhas de uma flor. Sorverá já sem pressa de
entender a matemática dos acúmulos e perdas, enquanto a noite a
solicitará para um encontro. Ela desliga o despertador do celular e
sente algo que não sabemos, neste instante, como chamar.
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