Artes Visuais

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Bando

Lili é um asterisco, riscos de pouca definição. É minúscula, lépida e sem rosto. Assim ela dispara a correr nos meus primeiros anos.
 
Depois, já no apartamento, o pai trouxe a Bianca, a primeira da dinastia, precursora da tradição. Branca, cheia de círculos, hábito de se guardar no subsolo do sofá. Era cheia de graça - que trouxe do próprio fato de existir, sem ter aprendido com alguém. Bianca foi junto à família viver em Mococa, cidade de ruas de terra colorindo suas orelhas. Lá descobri a reprodução em massa da espécie, uma caixa de papelão servindo de berço aos que chegavam (logo seriam espalhados pelo mundo). Um dia, uma chuva, uma árvore, um muro derrubado, um carro e Bianca não mais.
 
A presença da ausência se transformou em regresso: Catuxa, saída da anterior, regressava ao chão natal por desentendimento com a família que a levara. Faltando um pedaço, feito à mãe, vinha preencher novamente a casa com pelos e truques. Mas no emaranhado de desejos, entre a saída de Bianca e a chegada de Catuxa, mais três apareceram. Primeiro uma baixinha e malhada que chegou logo após o atropelamento da primeira: ganhou um nome, que por piada foi substituído: ficou Maconha! Esse nome grudou de tal maneira que ainda hoje não lembro o primeiro nome escolhido. Veio ainda Yasmin, filhote fraco que prometia atamanhar. E de lambuja, a própria mão dela, já adulta e nos arredores da morte. Maconha ganhou novo lar (até hoje não sei exatamente o que aconteceu), Yasmin foi enterrada sob a árvore e Lassie sobreviveu imensamente.
 
Catuxa pequena e Lassie inteira. Setter Irlandês, porte nobre e calmo. Até demais. Lassie era tão carinhosa quanto preguiçosa, se esbaldando de sol e afago. Vivia arrastada, tanta a manha de viver. Quando na mudaça para nova casa, assustou-se e caiu do caminhão. Agitada, Catuxa só assistia.
Bianca gerou Catuxa que gerou Balu, uma que me ensinou que não era natural sua raça não ter rabo.
 
Quando do retorno a São Paulo, ao apartamento mínimo, Lassie ganhou mais sombra ficando em uma fazenda no interior. Balu ficou com os parentes de lá e só Catuxa migrou para a capital. Mas a doença de minha mãe já não podia com o pó e o pelo. Catuxa mudou de história. E logo minha mãe também virou reminiscência.
 
Por costume de lugar pequeno, chegou a Mell, que não era parente, mas continuava a vontade de poodles naquele andar. Mell diminuta, cauda curta, urina fora de hora. Cinco anos minha companheira de cama, uma vez que ambos dormíamos ao rés-do-chão. Fui viver outros quintais, mas Mell ficou: engordando, chorando de boba, implicando com o pássaro, ocupando cantos.
 
Retraçando o território: Lili, Bianca, Catuxa, Maconha, Balu, Yasmin, Lassie, Mell. Fora os visitantes: Senhorzinho, Laica. E os atuais: Guna e Blog, tão presentes em tudo que crio, dois que estão em cada palavra que escrevo.
 
Esta semana Mell se esgotou. A primeira da narrativa a chegar ao fim pelo tempo, a continuar por perto até a idade deixar. Até deixar vestígios de sua passagem no vazio do caminho. Os cães tem ocupado um lugar de parte do bando em minha família. Uma parte que nos leva a querer uivar à lua cheia quando fazem falta.

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