Há que experimentar o prazer para, só depois, bem suportar
a dor. Vim ao mundo molhado pelo desenlace. A dor do parto é também de quem
nasce. Todo parto decreta um pesaroso abandono. Nascer é afastar-se - em
lágrimas - do paraíso, é condenar-se à liberdade. Houve, e só depois, o tempo
da alegria ao enxergar o mundo como o mais absoluto e sucessivo milagre: fogo,
terra, água, ar e o impiedoso tempo.
(...)
É preciso muito bem esquecer para experimentar a alegria de
novamente lembrar-se. Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a
memória chega a esquecer-se deles. E a palavra — basta uma só palavra — é
flecha para sangrar o abstrato morto. Há, contudo, dores que a palavra não
esgota ao dizê-las.
(...)
Aturdido. Eis uma palavra muda traçando fronteira com a
loucura. Só hoje descubro esta sonoridade surda morando em mim, ainda menino.
Aturdido pelo medo de, no futuro, não ganhar corpo, e não suportar o peso das
caixas de manteiga. Aturdido por ter as carnes atrofiadas sobre os ossos.
Aturdido por ter a alma como carga, e suportá-la para viver o eterno que
existia depois de mim. Aturdido por ser mortal abrigando o imortal. Aturdido
pelo receio de descumprir as promessas deixadas aos pés dos santos. Aturdido
pela desconfiança de a vida ser uma definitiva mentira. Aturdido por vislumbrar
o vago mundo como fantasia de Deus, em momento de ócio
(...)
Mentir a si mesmo é uma formula para aliviar-se. E não há
contra-prejuízo ao enganar-se. O pecado sobrevive dentro do pecador. Cada
mentira é mais outra fantasia
(...)
Eu desconhecia a extensão do mundo. Minhas palavras
minguadas não explicavam minha descrença a esperança. Eu possuía, oculto em
mim, também o que eu não sabia dizer. Trazia de cor e decifradas algumas
palavras: aturdido, suspeito, profundo, deserto, promessa, solidão e um amor
condenado a minguar pelo exílio. Cobiçava conhecer mais palavras para nomear o
incômodo perpétuo instalado pela dor.
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