Artes Visuais

quinta-feira, 13 de abril de 2017

LEITURAS - A Chuva Imóvel, por Campos de Carvalho

Sentia-me tão lúcido que nem um instante me ocorreu a hipótese de estar sonhando, dormindo ou mesmo morto: agora minhas pernas me levavam contra  aminha vontade, eu estava a cavalo sobre mim mesmo, era um centauro e meu nome já não formava qualquer sentido.

(...)

A lógica dos lógicos não me interessa, o seu ontem e o seu hoje só meu causam náuseas, seu relógio de cuco (mesmo de bolso) não me desperta qualquer curiosidade. (...) Não sou o que sou neste instante, mas um só desde que nasci: múltiplo, múltiplo, múltiplo. Cada fio do meu cabelo é uma verdade diferente, e todos me pertencem: respiro por todos os poros, cada um por sua vez, e só assim não morro de asfixia. O que pode pensar um lógico através dos seus poros é que eu não sei.

(...)

Como roncam os que têm a consciência tranquila! (...) Dormir a esse ponto, sem ao menos um olho à espreita, como se o teto ou o céu não pudesse desabar a qualquer instante, e não houvesse em toda a extensão da terra uma só vítima do câncer ou da injustiça, um só faminto ou um único suicida, nenhuma fábrica de canhões ou nenhuma cadeira elétrica – convenhamos que é ter mesmo vocação para defunto e nem ter vindo ao mundo para outra coisa, por mais que a Constituição diga o contrário, e o rádio, e a vitrola, e a bula do papa e dos remédios – e sobretudo cada um a si mesmo diante do espelho, vestido para o domingo.

(...)

(....) tudo isso me lembra que sou um contemporâneo: de mim, digo: deste meu corpo: desta fumaça e destes lustres: e destas vozes sobretudo por mais que s confundam e me confundam, as mesmas vozes que a esta hora estarão repetindo a mesma coisa na China ou n Dinamarca, na tela e todos os cinemas e no pátio de todas as prisões, e até nos hospitais  nos hospícios por mais que se faça silêncio. Giro que giro acabo dando em mim, presente de corpo inteiro a este presente e a esta véspera, refém e testemunha como qualquer outro, não importa quantos passados haja dentro ou fora de mim, nem quantas cruzes tenha o um sangue, esse meu cemitério particular.

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