Sentia-me tão lúcido que nem um
instante me ocorreu a hipótese de estar sonhando, dormindo ou mesmo morto:
agora minhas pernas me levavam contra
aminha vontade, eu estava a cavalo sobre mim mesmo, era um centauro e
meu nome já não formava qualquer sentido.
(...)
A lógica dos lógicos não me
interessa, o seu ontem e o seu hoje só meu causam náuseas, seu relógio de cuco
(mesmo de bolso) não me desperta qualquer curiosidade. (...) Não sou o que sou
neste instante, mas um só desde que nasci: múltiplo, múltiplo, múltiplo. Cada
fio do meu cabelo é uma verdade diferente, e todos me pertencem: respiro por
todos os poros, cada um por sua vez, e só assim não morro de asfixia. O que
pode pensar um lógico através dos seus poros é que eu não sei.
(...)
Como roncam os que têm a
consciência tranquila! (...) Dormir a esse ponto, sem ao menos um olho à
espreita, como se o teto ou o céu não pudesse desabar a qualquer instante, e
não houvesse em toda a extensão da terra uma só vítima do câncer ou da
injustiça, um só faminto ou um único suicida, nenhuma fábrica de canhões ou
nenhuma cadeira elétrica – convenhamos que é ter mesmo vocação para defunto e
nem ter vindo ao mundo para outra coisa, por mais que a Constituição diga o
contrário, e o rádio, e a vitrola, e a bula do papa e dos remédios – e
sobretudo cada um a si mesmo diante do espelho, vestido para o domingo.
(...)
(....) tudo isso me lembra que
sou um contemporâneo: de mim, digo: deste meu corpo: desta fumaça e destes
lustres: e destas vozes sobretudo por mais que s confundam e me confundam, as
mesmas vozes que a esta hora estarão repetindo a mesma coisa na China ou n
Dinamarca, na tela e todos os cinemas e no pátio de todas as prisões, e até nos
hospitais nos hospícios por mais que se
faça silêncio. Giro que giro acabo dando em mim, presente de corpo inteiro a
este presente e a esta véspera, refém e testemunha como qualquer outro, não
importa quantos passados haja dentro ou fora de mim, nem quantas cruzes tenha o
um sangue, esse meu cemitério particular.
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