Artes Visuais

domingo, 10 de dezembro de 2017

O CASO DO VESTIDO - (e Variações sobre o mesmo Tema)



No segundo semestre de 2017 a atriz Valéria Rocha pediu que eu escrevesse dois textos para uma intervenção. Os textos fariam parte de uma trilogia e deveriam seguir o mesmo andamento do texto que serviu de estopim para a criação, o poema O Caso do Vestido, de Carlos Drummond de Andrade.

Os textos forma escritos, apresentados e ainda seguem apresentado pela atriz em outras momentos.
Gosto dos resultado, do diálogo com o mineiro. São textos que borram a fronteira de gêneros, são dramaturgias, são contos, são poemas. Em que livro publicá-los, como classificá-los?




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O Caso da Casa


Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestígio
de um momento que passou.

Passou quando, nossa mãe?
É história adormecida?

Minhas filhas, boca presa
de memória, vezes pesa,

outra vez é vulto leve
que o vento leva embora.

Nossa mãe, dizei depressa,
que passado ele veste?

Minhas filhas, o meu corpo
já é outro, como é outra

a situação, muito embora
tudo ainda se parece.

Nossa mãe, esse vestido,
tanta renda esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Eu vivia em outra casa,
nem tão perto, nem distante.

Nem sequer imaginava
vosso pai e minhas meninas.

Era eu mesma menina,
feita para ser a filha:

a caçula, folha nova
de uma longa família.

A casa era modesta,
os parentes apinhados

entre as poucas paredes
do sobrado de aluguel.

Pai pagava o senhorio
com serviço tecelão;

mãe nutria mais a renda
com as mãos de costureira.

Não era de muito brilho
o casebre apertado,

mas era retiro bom
para quem é de salário.

Nossa mãe, porque cantais
se a existência era um fardo?

Minhas filhas, porque o canto
sempre foi a calmaria

das almas que desesperam
nas tormentas desse mar:

se não cura, alivia
o medo das trovoadas

e das pancadas que o tempo
germina dentro da gente.

Cada goteira que dava,
rato, roubo, grito, frio,

mãe e pai se aventuravam
no fôlego de construir

curativos na morada
que resistia, teimosa.

Eu crescia e ganhava
roupas de irmãs crescidas:

remendadas, costuradas
com cicatrizes de linhas,

cada veste era herança
de instantes e esperas,

de tardes e experiências
que minhas irmãs tiveram.

Certa feita, fui ao leito
por doença sem aviso:

demolia adolescência,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
e nada que aplacasse.

Minha mãe, então, fez reza,
(não sei qual a entidade)

de que se eu sobrevivesse
faria uma caridade

e de quebra, um vestido
novo me cobriria.

Fiquei fora de perigo,
corada, calma,vistosa

e ansiava o vestido
que vossa avó preparava.

Vestiria bem o mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia, porém, o dono,
da casa deu a ordem:

- Eu vendi este casebre
e também as germinadas

para a grande construtora
que aqui fará edifício.

Meu pai, cheio de planos,
quis saber se no tal prédio

haveria apartamento
que coubesse toda a prole.

O dono se riu, babou,
tirou lenço, teve engasgo,

teve pena, quase nada,
e a sentença anunciou:

- Será torre de marfim,
duvido que você possa.

Mas a construção precisa
de pedreiro, mão de obra.

Negocie com o patrão:
quem sabe sobra serviço

que aumente sua posse.
E marcou fim do contrato.

Nosso pai tentou trabalho,
nossa mãe se desdobrou,

e as semanas mais suavam
conforme o prazo chegava.

Um irmão mudou de estado,
uma irmã se fez bedel,

outra irmã casou na igreja,
teve irmão  que se perdeu.

Eu também auxiliava
nos retalhos, que eram poucos,

também pouco era o ouro
que alimentava o lar.

Quede lugar habitável,
quede terra, chão, quintal?

Quede tudo que merece
quem labuta sol-a-sol,

quem transforma noite e dia
em produto de ocasião

mas no mercado da vida
é mercadoria fútil?

No dia e hora marcada,
os homens se achegaram

com suas máquinas e armas
prontas para o progresso.

Minha mãe embrulhou o que dava
para carregar nas costas,

o resto foi na carroça
que meu pai achou de puxar.

Ela me chamou e disse:
tome aqui o seu vestido,

leve consigo e guarde,
pois quando tudo  melhorar,

será essa sua veste
na festa que iremos dar.

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Apenas sorri, sincera,
agradecida, ansiosa

pelos dias que viriam
fantasiados de sonhos.

Esse vestido que aqui vêem
vazio, pregado à parede,

confundindo minhas tramas
num sentimento esquisito,

é o par que me espera
para a dança que évem.

Minhas filhas, eis que ouço
um canto que não se rende.

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 O Caso do Circo

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Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma época que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Éramos não nascidas?

Minhas filhas, boca presa,
que memória  é chicote:

se recua, toma força,
se retorna, bate forte.

Nossa mãe, dizei depressa,
que história é este vestido?

Minhas filhas, já me esqueço,
esqueçam disso também.

O vestido, nesse prego,
é fogo morto, passado.

Nossa mãe, esse vestido,
tanta renda esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

O circo vinha de longe,
andante de déu-em-déu,

trazia no ventre de lona
artistas de línguas outras.

Do meu ventre, já paridas,
as filhas que Deus me deu

sem saber se eu queria
ser esposa, mãe ou o quê.

Fui vivendo sem vontade
de me haver nessa viagem,

existindo assim, sem brilho,
sem viço, sem assombro.

Quando o circo cá esteve
com todo seu explendor,

me atravessou por dentro
um medo de permanência

e o ardor de uma paixão
de pele se iluminar.

Quis não ser espectadora,
quis a lona por meu lar.

Deixei vocês com a avó
e com o circo me casei.

Nossa mãe, porque nos faz
confissão de abandono?

Minhas filhas, escutai
o que conto e não escondo,

insistiram que eu lembrasse,
pois partilho tudo, agora.

Secai vossas lágrimas,
já que aqui estou de volta.

Mil cidades adicionei,
fiz cartaz, bilheteria…

mas foi como equilibrista,
sapatilha de cetim,

que meu brilho se fez sol
e existir ganhou sentido.

O vestido era a glória
dos meus dias bailarinos;

meu funâmbulo viver
foi feito de fantasia;

tive amores de plateia,
semeei risos suspensos;

me atirei em rede baixa,
fiz da queda meu descanço;

plantei vogal de surpresa,
tantos aplausos eu colhi.

 Passei terras, passei pastos,
passei ponte, passei rio,

conheci diverso povo,
mandei cartas e retratos

perguntando à vossa avó
como estavam minhas filhas.

Poucas palavras voltavam,
pontuando os meus dias,

os meus dias que voavam
nas alturas do equilíbrio.

Por um fio ia a vida
variando experiências,

mais enchendo de vontades,
vontades que, enfim, eu tinha.

Sonhei em sumir no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia, porém, sem jeito,
em meu peito fez-se susto.

Pequeno, inocente, mudo,
no princípio nem me dei.

Era um aperto, um entrave
de fazer perna tremer

quando deveria andar.
A cabeça me pesava

pensamento sem ideia,
só um nó no raciocínio

de ver tanta gente embaixo
que babava por meu tombo:

mesmo que nem percebessem,
desejavam a vertigem

de presenciar, de frente,
próximo passo em falso

seguido de um corpo em queda
rumo ao chão sem proteção.

Olha, eu mesma me disse,
olha como são pequenos

e te enxergam pequenina
qual formiga caminhando,

a qual basta uma brisa
para ser arrancada

de tudo o que conhece,
de tudo aquilo que se é.

Eu não tinha mais impulso
de andar quase miudo

naquele arame fino
de bamboleio certeiro.

Quede o brilho que eu tinha,
quede força ovacionando?

Quede anseio de aventura
que deixava a assitência,

inquieta, em silêncio?
Quede a vida me chamando?

Tudo isso se passava
em meu medo indomado,

em meus olhos fez morada
a indesejada Morte.

Me senti feita de vidro,
frágil, atarantada, humana.

Despertava em madrugadas,
suada, sobressaltada,

arrancava os cabelos,
gemia, encolhia pernas.

Não sabia pesadelo
ou se estava acordada.

Antes o pavor não vinha,
ao depois pavor pesou.

No rodar de mundo, o circo
retornou à esta cidade

Da lona, fui partejada,
pesando quilos de casos,

com a pele amarrotada
e marcada pelo tempo.

Saí do picadeiro
sem voltar minha visão,

para ignorar a morte
que o risco me gritava.

Parei no portão de casa,
sua avó me recebeu,

disse: eis aqui vossas filhas,
te esperam cochilando.

O vestido que eu usava
ficou pregado à parede,

confundindo aqui dentro
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho, 
vestido não há, nem circo.

Minhas filhas, guardem bem,
que este conto não repito.


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